terça-feira, 16 de abril de 2019

Estudos sobre Anne Frank – Parte 3: Livro 'Recordando Anne Frank'

Após ler o diário de Anne Frank, esse é o livro que eu mais recomendo ler em seguida, pois aborda o antes e depois do diário, nos aprofundando bastante na história de Anne e sua família:


"Recordando Anne Frank" foi escrito por Miep Gies com a ajuda da escritora Alison Leslie Gold. A edição que li é uma versão em português produzida pela editora Gutenberg, traduzida por Iris Figueiredo.


Por que começar por esse livro?


O livro de Miep traz uma perspectiva mais ampla sobre o início e impacto da Segunda Guerra Mundial, o avanço do nazismo e por consequência a perseguição aos judeus que resultou na produção do Diário de Anne Frank. O relato de Anne é uma pequena fatia, única e rara, rica em detalhes e sentimentos de um evento de proporções gigantescas e catastróficas contra a humanidade. A história contada por Miep tem um ponto de vista mais amplo, parte das memórias de uma mulher bastante amadurecida e experiente, que desde cedo teve que lutar para sobreviver à miséria que atingia boa parte da Europa.

Mesmo se você tem poucas informações sobre a Segunda Guerra Mundial, ou da própria Anne Frank, esse livro é bastante interessante, pois serve como uma introdução não apenas sobre a guerra, mas também sobre Anne e as pessoas que conviveram com ela no Anexo Secreto. Esse livro pode lhe parecer como uma luz que foca em lugares totalmente desconhecidos, complementando as reflexões de Anne e indo para além do que Anne nunca poderia ter relatado: o fim da guerra e suas consequências. E indo um pouco mais além, sabemos também sobre a repercussão daqueles escritos salvados pela própria autora do livro.


Quem foi Miep Gies?




Hermine Gies-Santrouschitz, conhecida por Miep, foi uma das principais personagens da história de Anne Frank, pois ela atuava como uma "ponte" entre os judeus reclusos e o mundo exterior. Enquanto Anne relata seu mundo enclausurado e limitado pelas paredes do anexo, Miep conta a visão de alguém do lado de fora, "livre" - isso, livre com aspas, pois ninguém estava de fato livre com a invasão alemã.

Inicialmente trabalhando como secretária da empresa de Otto Frank, o pai de Anne, Miep foi ganhando a confiança da família e se tornou uma das peças fundamentais para a sobrevivência do grupo em segredo por mais de 2 anos. E apesar de todo esse empenho, ela nunca se considerou uma heroína, inclusive inicia o livro com essa frase no prólogo:

"Eu não sou uma heroína." 

Sempre discreta em relação a sua missão de ajudar a família, Miep apenas relatou sua parte da história em 1987, mais de 40 anos depois do fim da guerra. A versão brasileira do livro que li para o estudo é de 2017, sendo que contém um posfacio escrito em 2009, na altura do centésimo aniversário de Miep Gies, que contou mais alguns detalhes que ocorreram após a publicação do livro - como o falecimento de seu marido Jan - as diferentes edições publicadas do diário, e até mesmo sobre a castanheira descrita por Anne que teve que ser derrubada, entre outras informações bastante pertinentes.


Miep Gies faleceu no dia 11 de janeiro de 2010 aos 100 anos na Holanda.


O Livro


O livro é divido em três partes, sendo:

1ª Parte - Refugiados - um pouco do passado de Miep, que nasceu em Viena na Àustria, e se considerava uma refugiada assim como a própria família Frank. Ela relata como foi seu começo em Amsterdã, passando pelo momento em que conhece seu futuro marido Jan Gies, quando começa a trabalhar para Otto Frank, até o momento em que ajuda a família a se esconder nos fundos do prédio comercial, local que veio a ser conhecido como o anexo.

2ª Parte - No esconderijo - período em que ajudou a família Frank e os Van Pels (chamados por Van Daan no diário de Anne) a chegada do dentista Fritz Pfeffer (Albert Dussel no diário) e cobre praticamente todo o período do Diário de Anne Frank (lembrando que Anne começou a escrever no diário dias antes de perder a liberdade).

3ª Parte - Os dias mais sombrios - se inicia com o descobrimento da família no anexo, passando por todas as aflições de Miep e Jan para saberem do paradeiro de seus amigos, até o retorno de Otto Frank após o fim da guerra.

"O Sr. Frank era um homem sagaz. Quaisquer que fossem seus pensamentos e suas percepções sobre sua posição como judeu, eu sabia que seriam inteligentes."

Assim como aqueles dias foram muito difíceis para as pessoas no anexo, foram também para os que estavam do lado de fora, cada um a sua maneira. Miep narra todas as dificuldade de conseguir comida para o grupo e sua família, fala sobre outros amigos e conhecidos judeus que ajudou a se esconder, dos que foram desaparecendo, do trabalho sorrateiro e confidencial de seu marido Jan - sendo parte de uma resistência que agia na clandestinidade para conseguir coisas no mercado negro e ajudar também outros fugitivos.

Talvez o que seja a parte mais interessante das memórias de Miep Gies, é a sua visão da família Frank antes do período de reclusão. Uma família de classe média educada, sem ser arrogante, que gostava de fazer reuniões agradáveis em sua casa com seus amigos mais próximos. Considerava Otto justo e inteligente, Edith uma mãe dedicada que se vestia bem, assim como fazia questão de que as filhas também tivesse boa educação e bons modos.

 Seu dialogo interno também é admirável, ao tentar sempre trazer uma sensação de normalidade em seu relacionamento com os escondidos do Anexo. Mesmo tendo vivenciado situações diárias de tensão e medo, Miep jamais transmitia suas preocupações aos seus protegidos, se esforçando para agrada-los de alguma forma, fazendo visitas diárias com informações (sempre que possível positivas) sobre o mundo lá fora.

Outro momento que vale a pena destacar é sobre a noite que Miep e Jan passam no anexo, por insistência de Anne. Ela nunca conseguiu dormir de verdade por lá:

"Não dormi; não consegui fechar os olhos. Ouvi o som de uma tempestade se formando, o vento soprando. O silêncio do lugar era opressivo. O medo daquelas pessoas trancafiadas ali era tão pesado que eu podia senti-lo me esmagando. (...) Agora eu sabia como os judeus se sentiam."

Tendo grande empatia pela situação de seus amigos judeus, Miep se arriscou e de fato fez todo o possível para manter-los a salvo, até mesmo indo encarar de frente um dos oficiais responsáveis pela prisão da família, que confirma a descoberta por meio de uma denúncia anônima, que na época era incentivada pelos alemães com gratificações em dinheiro.

Os "guardiões do anexo" com Otto Frank ao centro: Miep Gies na esquerda, Elizabeth "Bep" Voskuijl (Elli Vossen no Diário), no alto a esquerda Johannes Kleiman (Sr. Koophuis) e Victor Kugler (Victor Kraler).


Depois da Prisão


Todos os esforços de Miep para saber do paradeiro da família não geraram resultado. Ela é informada que o fato deles terem se escondido, evitando a convocação obrigatória, os colocava numa situação mais grave, sendo enviados as campos de concentração mais rígidos e distantes. De toda forma, o destino do grupo não teria sido melhor, pois muitos  daqueles que estavam em campos menos restritos (como relatado por Nanette Blitz Konig em "Eu sobrevivi ao Holocausto", 2015) também tiveram um final fatal.

Miep guardou os diários e folhas soltas escritas por Anne na gaveta da sua mesa no escritório, esperando o retorno da escritora para devolve-los. No dia 6 de junho de 1945, Otto Frank retorna após sua libertação no campo de Auschwitz, sabendo apenas que Edith, sua esposa, não sobreviveu.

As esperanças de que Anne e Margot estivessem vivas eram grandes, pois elas haviam sido enviadas para o campo Bersen-Belgen, onde não havia camera de gás ou outras formas de extermínio em massa. Na empresa, que funcionou durante todo o tempo da guerra, o Sr. Frank retoma sua posição de chefe, Miep segue em suas funções que nunca foram suspensas. Uma espécie de rotina habitual retornou a vida de ambos, ajudando a manterem suas mentes ocupadas com coisas além da guerra e do paradeiro das garotas Frank.

Pouco depois do que seria o 16º aniversário de Anne, em 12 de junho, Otto recebe a carta de uma enfermeira de Roterdã confirmando a morte das irmãs. Miep e Otto ficam, naturalmente, em choque com a notícia. O Sr. Frank então retorna a seu escritório na empresa. A única reação de Miep é de pegar os escritos de Anne, guardados em sua gaveta por quase um ano, e os entrega a Otto dizendo:

"Aqui está o legado que sua filha Anne deixou para você."


O que vem a seguir e a briga judicial sobre os direitos autorais do Diário


Na próxima parte do estudo, iremos entrar no diário de Anne Frank em si, falando de suas diferentes versões e fazendo alguns paralelos com os dias de hoje. Se quiser acompanhar esse estudo comigo, estarei usando como base a edição definitiva por Otto H. Frank e Mirjam Pressler, publicada pela Editora Record em 2015, 49ª edição. Mas se você tiver outra versão do diário, também poderá acompanhar os estudos com base nas datas de entradas. 

Infelizmente, por conta de uma questão burocrática e técnica sobre direitos autorais, o diário ainda não está em domínio público (no Brasil e em nenhum outro país) já que a Anne Frank Fonds, fundação Suíça criada pelo pai de Anne em 1963, detém os direitos autorais do diário. Existem atualmente 4 edições diferentes do diário (denominadas A, B, C e D) sendo que as mais completas (versões C e D) são edições mais recentes, que tem interferência na edição de Otto e da escritora Mirjam Pressler, fazendo com que a "autoria" do diário, fosse compartilhada com mais essas duas pessoas, o que teoricamente mudaria o prazo de liberação para domínio público. Anne morreu em 1945, sendo assim em 2015, o 70º ano necessário para manter esse direito, colocando o dia 1 de janeiro de 2016 como o dia em que o diário estaria em domínio público. Com a adição desses 2 nomes tudo muda, pois Otto Frank faleceu em 1980 e Mirjam Pressler ainda está viva.

Quem está na briga para a liberação de um edição livre do diário é a Casa de Anne Frank ("Anne Frank Stichting" no Holandês), que é uma instituição holandesa que cuida do Museu Anne Frank, bem como de toda a história e legado da família Frank. Para essa instituição, é fundamental essa liberação para que o diário possa chegar a mais pessoas e lugares, estando disponível inclusive numa versão online gratuita. Até esse momento não há uma decisão sobre a liberação desses direitos, que no momento seguem contados pela morte de Otto, atingindo 70 anos em 2050.

A Casa de Anne Frank preparou, durante 5 anos, uma edição online completa da obra, que estaria gratuitamente online em primeiro de janeiro de 2016.

Além de toda essa importância histórica e cultural do diário, ele é um dos livros mais vendidos no mundo e o interesse comercial da fundação é grande. Esse interesse comercial, na minha opinião, vai contra os propósitos de Anne e do próprio diário, que seria de tornar a história de Anne mais acessível a todos, independente de local e condição financeira. A Anne Frank Fonds alega que o valor  em direitos autorias recebido pelo diário, serve para sustentar projetos educacionais e caridosos da fundação, que visam propagar o legado de Anne Frank.


domingo, 7 de abril de 2019

Resenha 'Terra Molhada' de Thalita Coelho

"Mas não foi por acaso que amei seu sorriso. Nenhum acaso é forte assim. Prefiro chamar seu sorriso de destino."



Terra Molhada é um livro de poesia que faz a gente suspirar, seja de amor ou de dor, e até com algum humor, Thalita Coelho nos envolve numa jornada ao desconhecido familiar, que apenas uma mulher que ama mulheres poderia ter criado.


Em versos e prosas que se alternam com ilustrações inspiradas nessas mais de 100 páginas de poesias, somos embalados pelas força e vulnerabilidade traduzidas no papel por palavras sensíveis, muitas vezes também duras, que esse "quebra-cabeça" nos propõe.



Entre os altos e baixos desse eu lírico que se coloca de peito aberto ao leitor, somos provocados por essas peças, que vão formar mosaicos diferentes para cada um que se propor a montá-lo. Você pode sorrir de canto quando ler sobre "a curva mais bonita de uma mulher". Sentir arrepios ou estremecer com a direção de "lábios que ardem". Achar graça com a proposta de "dançar Chiquititas no meio da rua". Ser tomado pela melancolia de um coração que "recorda, até hoje / do peso que era ser rocha, / seca, sólida, só." As possibilidades são amplas, mas uma delas é certa: você será tocado profundamente.


"Terra Molhada" é um oásis com água fresca no meio de uma sociedade heteronormativa. Fonte de inspiração para todos os seres sensíveis, vital para as mulheres que amam mulheres.

"Minha maior luta
É amar a céu aberto"

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